sexta-feira, 31 de maio de 2013

A Vida Religiosa na evangelização da América Latina

A partir de dois artigos, publicados respectivamente na revista Convergência (Brasil) e na revista da CLAR (Bogotá), enumeramos  aqui aspectos positivos e apelos da Vida Religiosa na evangelização de  nosso continente, que incluem pessoas, comunidades, Institutos, Conferências de Religiosos nacionais e continental (CLAR).

(a) Testemunho de Vida pessoal. Ao perguntarmos aos leigos(as), que atuam na evangelização ou colaboram em iniciativas das Congregações sobre o traço característico dos consagrados, o primeiro aspecto que vem à tona consiste no relato de experiências de vida na qual um religioso ou religiosa marcou a existência deles.  Este talvez seja o sinal luminoso mais evidente da Vida Consagrada e que impacta na Evangelização. Cada Congregação religiosa abriga e desenvolve em seu seio um grupo significativo de mulheres e homens extraordinários e simples. Não são grandes celebridades que aparecem na mídia. Na sua vida cotidiana, testemunham bondade, misericórdia, generosidade, amor a Deus, serenidade, solidariedade e profecia. Enfim, valores do Evangelho. A Vida Religiosa tem o rosto de milhares de pessoas, vivas e falecidas, que internalizam os valores evangélicos e o testificaram em gestos, posturas e atitudes, a radicalidade do seguimento de Jesus. Cada vez mais, os cristãos necessitam de modelos ou referências de vida que sejam possíveis e visíveis.

(b) Opção preferencial pelos pobres. É sabido que a maioria das nossas congregações nasceu para atuar junto dos pobres. Lentamente, elas assumiram grandes obras e instituições, que distanciaram seus membros daquele enorme contingente que está “à margem”, privada dos direitos sociais e do exercício da cidadania. Na sociedade contemporânea, multiplicaram-se a riqueza e pobreza. A Vida Consagrada foi chamada a responder a este desafio. Na América Latina, a partir de Medellín-Puebla a opção preferencial pelos pobres ganhou rosto singular. Compreendeu-se que a pobreza não é somente um fenômeno individual, mas sobretudo coletivo. Estruturas políticas, econômicas e sociais legitimam e ampliam a exclusão social. Então, a ação dos religiosos(as) mudou substancialmente. A partir da metodologia libertadora inaugurada por Paulo Freire, consideram-se os pobres como seres humanos chamados a serem protagonistas de sua história, como pessoas, cidadãos e membros da comunidade cristã. Nas comunidades religiosas inseridas e em outras formas similares de missão se valorizam a convivência e discipulado: estar com os pobres numa relação fraterna de aprender e ensinar.
A opção pelos pobres se coloca no horizonte de crítica à sociedade existente e de empenho na construção de um novo projeto de humanidade. Por isso, investe-se na conscientização e na organização popular. Os agentes de Pastoral - presbíteros, religiosos/as e leigos/as - prepararam lideranças populares para assumirem o protagonismo na Igreja e na sociedade. Estão com os pobres, contra a pobreza. As ações assistenciais se libertaram do assistencialismo paternalista, que considera os pobres como “coitadinhos” e incapazes. No correr dos últimos anos, as comunidades religiosas contribuíram enormemente na formação e no acompanhamento de lideranças rurais e urbanas, que atuaram em processos de transformação social. Recentemente, tem-se engajado também no processo de definição e monitoramento das políticas públicas.
Em muitos países do nosso continente, há comunidades religiosas no meio dos pobres, em lugares onde os outros não arriscam entrar. A lista é enorme, e constitui uma grande contribuição da Vida Consagrada para a Evangelização no nosso continente. Citemos aqui alguns destes lugares: bairros pobres e violentos das grandes cidades, comunidades rurais, aldeias indígenas, comunidades terapêuticas de recuperação de drogados, centros de acolhida à população de rua, centros de referência para mulheres pobres em situação de prostituição.

(c) Espiritualidade bíblica e encarnada. Os consagrados são caracterizados como “homens e mulheres de Deus”. A Vida Religiosa nasce e se desenvolve como forma original de seguir a Jesus. Hoje, percebe-se com clareza que ela não é um “estado de perfeição” e sim um “estado de peregrinação”. A partir de uma antropologia unificadora, que compreende o ser humano com unidade plural de corpo e espírito, busca-se superar o espiritualismo pessimista e escapista. O cultivo da Espiritualidade ganha novo sabor. Vai além dos “Exercícios de piedade” e das devoções. Centra-se na leitura da Palavra de Deus em relação com a existência humana. Amplia-se com a oração espontânea, o louvor, os cânticos, a revisão do dia, a partilha das experiências, a celebração comunitária da eucaristia. Ora, tal mudança de perspectiva na espiritualidade da Vida Religiosa apostólica impacta diretamente na forma como ela evangeliza. Em vez de pregar que os cristãos devem se isolar do mundo, convoca-os a transformar o mundo. Quem experimenta a leitura diária da Palavra de Deus tem o desejo de partilhar esta vivência com outros. O ensinamento não está centrado na doutrina, compreendida de maneira fixista, mas no seguimento a uma pessoa, Jesus.
Há um segmento da Vida Consagrada, denominada “contemplativo”, que prioriza no seu estilo de vida, o silêncio, a oração pessoal e comunitária, a mistagogia. O sínodo reconhece a importância deste grupo na (nova) Evangelização. Os religiosos(as) de vida ativa os veem como companheiros e companheiras de caminho, que nos recordam a busca do essencial.
A dimensão contemplativa da Vida Consagrada, de maneiras distintas, é importante para todos, especialmente no contexto de crescente secularização e pluralismo religioso. Religiosos muito ocupadas, mas com o coração vazio de Deus, perdem a cor e o sabor de sua vocação. Coloca-se um imperativo: ou seremos homens e mulheres de Deus no meio do mundo, ou não seremos nada. Nas palavras de Jesus: “Se o sal perde seu sabor, para que servirá? (Mt 5,13s). Embora ainda minoritário, torna-se cada vez mais significativo o número de pessoas que procuram nos consagrados(as) referências de vida no âmbito da mística, da espiritualidade, da contemplação, da harmonia interior. Não querem mestres nem doutores, mas companheiros no caminho espiritual. O que lhes ofereceremos, em âmbito pessoal e coletivo?
No nosso continente, a CLAR e as Conferências nacionais de religiosos(as) oferecem amplo material didático para estimular o exercício da leitura orante da Bíblia. Muitas comunidades adotaram esta prática e a assimilaram como método prioritário para rezar. Mais ainda. Muitos religiosos(as) estão envolvidos, nas Igrejas particulares, na pastoral bíblica, na promoção de grupos de reflexão e partilha em torno da Sagrada Escrituras, na formação e acompanhamento espiritual de lideranças eclesiais a partir da Bíblia. Trata-se de uma contribuição inestimável para a (nova) Evangelização!

(d) Colaboração na edificação da Igreja Viva. A constituição dogmática “Lumen Gentium” resgatou a eclesiologia dos inícios da Igreja, ao utilizar a imagem de “Povo de Deus”. Leigos(as) e religiosos tomaram consciência de que são Igreja, como discípulos(as) de Jesus. Saíram da condição infantil de “filhinhos” e “submissos ouvintes”, para membros ativos. Mas este movimento foi freado recentemente.  Em meio à imensa onda clericalista e concentradora de poder, que devasta como tsunami a Igreja nos últimos 25 anos, felizmente o Sínodo da Nova Evangelização traz novamente a bandeira da “Igreja comunidade” e de estruturas participativas. Que seja bem-vinda!
Um contingente expressivo de religiosos(as) participou ativamente na edificação da “Igreja comunidade”, Povo de Deus a caminho, em nosso continente. Atuou na implementação e no crescimento das Comunidades Eclesiais de Base, colaborou na Catequese renovada, assumiu a animação de comunidades rurais e indígenas sem presbíteros, iniciou várias pastorais sociais, apoiou a organização de comunidades, paróquias, dioceses e Conferências Episcopais nacionais, prestou assessoria pastoral e teológica de muitas formas. Esta história continua, apesar do poder violento da “velha evangelização”, que reprimiu e destruiu experiências admiráveis, edificadas lentamente durante tantos anos. A questão se complica mais, quando religiosos(as) que atuam ativamente nos meios eclesiais, somos acusados de fazer parte de uma “Igreja paralela”. Ora, participação intensa e a crítica construtiva nascem do amor à Igreja e do senso de pertença a ela.
Porque fazemos parte de maneira ativa da Igreja e queremos que ela seja sal, luz e fermento no mundo, questionamos suas estruturas anacrônicas, a concentração do poder, as práticas androcêntricas, o refúgio no passado idealizado. Sonhamos e nos empenhamos para que a Igreja, em suas pessoas e estruturas, exercite a fidelidade criativa ao Evangelho, no diálogo com o mundo. Que sua pregação, seus gestos e sua postura traduzam a Boa Nova de Jesus com profetismo e sabedoria. O empenho pela “cidadania eclesial”, em contexto de ventos contrários, gera conflitos, perseguições e incompreensões, em âmbito individual, comunitário, de instituto e das conferências de religiosos. É o preço que pagamos por aquilo que acreditamos.
No entanto, o foco não reside no conflito ou no eventual dissenso, mas sim na busca da unidade da diversidade, em vista do diálogo vivo do Evangelho com a sociedade contemporânea, como ressaltou o sínodo. Pois é imprescindível que a evangelização, seja nova não somente no ardor, na linguagem e no método, mas também em estruturas eclesiais participativas.

(e) Parceria com os leigos(as) nas Instituições dos religiosos.  Nota-se um crescente envolvimento de profissionais e voluntários leigos na missão dos religiosos(as) em suas instituições formais, como escolas, hospitais, obras sociais, editoras e rádios. Destacam-se entre as causas: diminuição do contingente de consagrados, valorização da vocação do leigo na Igreja, exigência de crescente especialização e maior complexidade da gestão de obras. Inicialmente, os leigos(as) entraram nas obras realizando tarefas operacionais simples. Com o tempo, assumiram funções executoras. A seguir, cargos técnicos, e por fim, a gestão.
Esta realidade exige outra forma dos religiosos(as)  lidarem com os profissionais e voluntários leigos. Não mais de maneira caseira, ou considerando-os meros auxiliares, e sim como participantes da missão. Com o tempo, altera-se a estrutura de poder, abrem-se novos modelos de gestão compartilhada. Assim, a Vida Consagrada colabora com a (nova) evangelização, ao ensaiar estas formas originais de participação, empoderamento e protagonismo dos leigos, em instituições complexas. Escolas, Universidades e hospitais, por exemplo, não somente fazem parte da missão religiosa da Igreja, mas também compartilham de sua feição secular, pois atuam no mercado como prestadoras de serviços. E devem colocar a questão: como ser um sinal do Evangelho na sua própria estrutura organizacional e na maneira como atuam na sociedade?
Um fenômeno recente consiste em que leigos cristãos, para além do âmbito institucional, buscam as comunidades religiosas porque se encantam com o carisma congregacional e querem participar dele, mas mantendo sua condição laical. É ocasião propícia de compartilhar a espiritualidade e criar novas formas de pertença. Eis aí outra oportunidade para a (nova) evangelização.

(f) Religiosos/as em rede. Após o Concílio emergiu a consciência de que os Institutos religiosos apresentam elementos em comum nos carismas, problemas semelhantes, buscas e possibilidades de soluções. Ganham importância as Conferências de Religiosos(as), em âmbito regional, nacional e continental. O primeiro passo consistiu em promover momentos da formação inicial em conjunto. A seguir, estabelece-se a colaboração na reflexão, na animação espiritual, na formação permanente, na missão, e abordam-se temas emergentes, como a questão de gênero, a diversidade cultural e de gerações. Também criam-se iniciativas de partilha de carismas semelhantes. As diversas instâncias de intercongregacionalidade, ocasionais ou permanentes, possibilitam que os religiosos(as) e seus institutos se percebam para além de seus muros institucionais. Ao ver de longe, as vicissitudes ganham o peso que merecem. Renovam-se esperanças, partilham-se alternativas e dilata-se o horizonte de futuro. Sentimo-nos irmanados(as), em sintonia. As distintas “famílias religiosas”, com sua singularidade e relação, constituem uma grande família que chamamos “Vida Consagrada”. Esta forma horizontalizada de compartilhar experiências e realizar projetos comuns é útil para a (nova) evangelização, pois sinaliza um modelo viável de promover a catolicidade, unindo o diverso sem suprimir as singularidades.

Conclusão aberta
Apesar da crise vocacional, perda de membros de meia idade e envelhecimento que assola muitos institutos, há grande vitalidade na Vida Religiosa em nosso continente. Podemos dizer, sem sombra de dúvida, que colaboramos efetivamente na (nova) evangelização. Basta recordar, por exemplo, da imensa presença a atuação junto às crianças e jovens, em creches, escolas privadas, escolas conveniadas para os pobres, centros sócio-educativos, espaços culturais e evangelizadores. Convém recordar que os religiosos(as) tem papel preponderante na organização e animação da Pastoral de Juventude em muitos países, e preparam os jovens para que sejam evangelizadores de outros jovens. Os religiosos(as) também mantém uma série de organizações evangelizadoras na área da comunicação, desde editoras e livrarias, até produtoras de vídeos e emissoras de rádio.

No âmbito social, criam-se comunidades e obras em resposta às novas formas de pobreza e de marginalidade social, tais como toxicodependência, tráfico de seres humanos e população de rua. Algumas iniciativas colocam-se em consonância com o crescimento da consciência cidadã e planetária. Somam-se experiências ligadas à educação ambiental, economia solidária, saúde holística, direitos das mulheres, questões de gênero e diversidade sexual, diálogo inter-religioso, monitoramento das políticas públicas, uso de redes digitais na evangelização, entre outras. Trata-se de um leque amplo e diversificado, no qual se realiza a evangelização voltada para os pobres, em vista de uma nova sociedade, justa, fraterna, solidária e sustentável.

No que diz respeito à formação dos evangelizadores, faz-se necessário o investimento contínuo na seleção, formação inicial e acompanhamento de profissionais e voluntários leigos(as) que atuam nas obras e presenças apostólicas dos Institutos. Neste processo, conjugam-se as exigências profissionais com formação teológico-pastoral e conhecimento do carisma congregacional. Além disso, há um lado explicitamente religioso, que não está ligado à dimensão profissional. Trata-se de acompanhamento espiritual e da constituição de grupos de leigos e leigas que se sentem atraídos pelos carismas e querem tomar parte dele, como elemento constitutivo de sua opção de vida. Isso pode configurar novas formas de pertença e trazer um novo matiz para a evangelização.

A grande questão reside no fato de que as mudanças sócio-culturais são muito rápidas, e a Igreja tende a manter a linguagem, o método e os interlocutores já conquistados. Investe-se pouco em processos de renovação e de inovação. E neste campo, a Vida Religiosa pode “sair na frente”, como uma referência para a comunidade eclesial. Como? Constituindo eficazes “redes de profecia e inovação”. Como se afirmou anteriormente, grande é a complexidade da vida moderna em todos os âmbitos, e os desafios e oportunidades mudam com rapidez. Cada congregação, isoladamente, não tem em mãos as informações e os recursos (humano, patrimonial, financeiro, tecnológico, pedagógico, pastoral, profissional,...) necessários para tomar decisões e promover iniciativas arrojadas na Evangelização e no diálogo intercultural.

Muitos são os riscos e empecilhos. Alguns exemplos: O movimento popular ainda não se recuperou da crise de letargia que a atingiu nos últimos anos. No campo de organizações privadas de prestação de serviço, sofre-se a avassaladora concorrência do mercado. No âmbito eclesial, enfrentamos ondas conservadoras poderosas, que ameaçam afogar a Igreja dos Pobres. A lista, que poderia se alongar, confirma a apelo: ou nos unimos ou morreremos lentamente, cada um no seu canto.
Além da efetiva colaboração nas Conferências de Religiosos nacionais e na CLAR, que devem primar pela leveza e agilidade, as congregações que abraçam projetos pastorais semelhantes devem desenvolver mecanismos de partilha e de gestão de conhecimento (teórico e prático). Em alguns casos, isso significa a constituição de comunidades e de obras intercongregacionais. Em outros, exige a implementação de parcerias e de alianças estratégicas. Trata-se de estimular a cultura da colaboração intensa e da partilha de competências pastorais, na qual cada um oferece para o outro(a) o que tem de melhor e dele(a) recebe algo que necessita para seu crescimento, a serviço da evangelização.

Que o ardor e a ousadia dos nossos fundadores e fundadoras ecoem em nós, para abrirmos juntos caminhos evangelizadores no nosso continente!